Quarta-feira, 2 de Novembro de 2005

Restringir o acesso à informação?!

«O poder político precisa dominar o imaginário e o simbólico para se impor».
- Cornelius Castoriadis (filósofo, politólogo)

Os media cobrem e tratam todos os aspectos da actividade humana. Daí a voracidade manifestada por muitos para os dominar e controlar os seus conteúdos. E isso representa dominar a produção do discurso simbólico e manipular a performatividade da linguagem, tentar que a mensagem transporte intrinsecamente significado de interpretação unívoca na mente do receptor.
Essa avidez é profusamente demonstrada pela classe política.
E, normalmente, as tentativas de ingerência a pretexto de exigir isenção, redundam em tentativas mais ou menos disfarçadas de transformar os órgãos de comunicação social em veículos de propaganda
Ora, a propaganda é um fenómeno directamente relacionado com a conquista e o exercício do poder pelo que os regimes políticos não prescindem dos seus serviços para legitimarem o exercício desse poder.
É a tendência de todos os que detêm poder. Todos tentam e alguns conseguem. Uns de forma astuta, outros com fragor.
O Executivo da Câmara Municipal do Porto, por exemplo, decidiu a 31 de Outubro anunciar as “Linhas de Orientação nas relações da Câmara do Porto com a Imprensa”, a partir desta data. Fê-lo pela voz do seu Presidente, Rui Rio. Leu o documento e pô-lo imediatamente em prática, não respondendo a perguntas.
A intenção é restringir o acesso dos jornalistas à informação relativa à autarquia. Trata-se de um documento que tem tanto de totalitarista como de inútil.
Totalitarista porque expressa a confusão entre a obtenção, pelo voto, de uma maioria absoluta e o exercício do poder absoluto (já outros o fizeram, mesmo ascendendo ao poder com a legitimação dos eleitores); inútil porque extrema posições, contradiz-se a si próprio e desarma a sua própria argumentação.

Vejamos, então, as regras de relacionamento da autarquia com a comunicação social:

Restringir o seu relacionamento com os media exclusivamente às matérias de inegável interesse público, e evitar todas as que visem objectivos de interesse privado, corporativo ou editorial, designadamente as que apenas procurem especulação.

a) Fazer depender qualquer declaração para a comunicação social sobre matérias do Executivo, de prévio contacto do jornalista com o Gabinete de Comunicação da Câmara, a quem compete coordenar e executar todas as acções de comunicação com o exterior, seja do Presidente ou dos Vereadores.
b) Acordar com a imprensa apenas entrevistas por escrito, mediante critérios de oportunidade, com regras previamente definidas, evitando ou minimizando assim interpretações especulativas, ou a pura manipulação das respostas.

É bom recordar que se os entrevistadores são os donos das perguntas, os entrevistados são os donos das respostas.
c) O Gabinete de Comunicação da Câmara recorrerá, preferencialmente, à mensagem escrita, através de publicação no site oficial da Câmara e de difusão pelos média.
(sic)
Perante isto:

a) Que critérios usará a câmara para definir o “inegável interesse público”? Esta é, desde logo, uma expressão que gera um conflito de interesses entre as duas partes porque quem decide o que tem interesse para a construção da notícia é sempre o media, nunca a fonte!
Além disso, uma fonte é sempre uma parte interessada no assunto, ao contrário do jornalista.
Questão curiosa é saber como é possível evitar assuntos que visem matérias de interesse editorial! Tudo o que é publicado está subjacente a essa regra basilar. Tudo o que os media publicam, fazem-no em resposta ao seu estatuto e orientação editorial!!
E os assuntos individuais e corporativos não merecem a resposta do Executivo? Isso limita ilegalmente, até, o direito à informação sobre qualquer questão suscitada pelos munícipes, de forma individual ou colectiva. Mais uma vez, em última instância, quem decide sobre a noticiabilidade do assunto é o órgão de comunicação social com base nas suas regras de estilo e editoriais.
b) Exigir prévio contacto com o Gabinete de Comunicação é inútil e até disparatado visto que essa é já uma prática corrente. Por um lado, há questões que dispensam chegar à fala directamente com os protagonistas e, por outro, os gabinetes (competentes) facilitam o acesso às fontes pois, de outra forma, a espera – ao telefone, por exemplo – para fazer uma pergunta ou marcar uma entrevista poderia tornar-se um interminável calvário.
Mas esta exigência é a aplicação de um espartilho ao próprio Executivo. É a manifestação da total insegurança dos seus elementos. É a criação de um filtro absoluto entre as partes. É colocar mais ruído na comunicação entre os media e os protagonistas. É permitir que, muitas vezes, por capricho, inépcia ou simples incompetência, as questões não obtenham as respostas mais correctas. Ou procurar que não haja mesmo respostas. E dessa forma, é a fonte que falha. Comete um lapso. E fica inibida de imputar responsabilidades ao jornalista.

c) Acordar apenas entrevistas por escrito é um disparate. Quando se trata de uma entrevista tipo inquérito isso já é uma prática normal. Só que não pode ser banalizada. A esse propósito, o livro de estilo do Público define, e bem, que «só em casos excepcionais se farão entrevistas por escrito. Quando isso aconteça, o facto deve ser devidamente assinalado no texto e explicadas as razões do procedimento».
Convém realçar que o género jornalístico “entrevista” não é um inquérito com perguntas fechadas. A entrevista é uma conversa, uma interacção entre entrevistador e entrevistado. De forma que, perguntas não respondidas de forma clara ou imprecisa geram novas perguntas. É básico!
Parece, portanto, redundante e inútil recordar no documento de quem é a propriedade de perguntas e respostas.
Mas esta regra de acordar apenas entrevistas por escrito é completamente imponderada ao não prever o relacionamento com os meios audiovisuais!!!

d) Definir o site oficial da câmara como meio privilegiado para publicar a informação camarária é, igualmente, inútil. Um site não é mais do que um veículo de divulgação de comunicados! Eles também podem ser emitidos em papel ou escritos num quadro de ardósia! E comunicados não são notícia! Qualquer jornalista sabe disso! Eles são um ponto de partida para a elaboração da notícia! Mas suscitam sempre esclarecimentos adicionais.

A Câmara do Porto sente-se legitimada a restringir o relacionamento com os media perante um sentimento de perseguição por parte de “alguns jornalistas e comentadores” que durante o anterior mandato e durante a última campanha eleitoral se assumiram não como “agentes de informação e comunicação, mas sim como evidentes actores políticos” numa lógica de “contra-poder”.
Só que, sentindo-se vítima de “alguns jornalistas”, a resposta é dada contra todos. “Alguns” é assim metonímia para toda a classe. Jornalista é, então, sinónimo de agente persecutório. A Câmara opta por uma represália generalizada, excluindo qualquer recurso aos mecanismos legalmente definidos, como são os direitos de resposta e rectificação ou até os tribunais, para tentar sanar o conflito.
Logo, apesar da queixa ser relativa, somente, a “alguns” a restrição é decretada para todos. Todavia, o mesmo documento prevê, igualmente que o Executivo saberá fazer a distinção entre quem desenvolve e pratica uma informação responsável, isenta e plural e os que fazem do jornalismo uma arma de combate político ao serviço de interesses pessoais, de grupos ou de corporações”.
Assim sendo, qual a justificação das linhas de orientação previamente definidas? Elas contradizem-se, desmontam-se e anulam-se!
Este documento representa, aliás, uma enorme falta de estratégia de comunicação. Todo o argumentário do documento não se publica, pratica-se! Mas, mesmo assim, a manutenção ou potenciação de conflitos com os media são perigosos. As restrições de informação são coisa que não existe em rigor! É que as fontes não oficiais das instituições acabam por privilegiar os órgãos com os quais a instituição está oficialmente ou oficiosamente de relações cortadas. E isso tem sido assim, como o demonstra o caso particular da Câmara do Porto!

A manchete do conflito

Sem qualquer fundamentação exemplificativa da materialização do contra-poder, o documento basta-se a si próprio com um único exemplo: “a manchete do Jornal de Notícias de ontem, só por si, justificava esta nossa decisão”.
A manchete era: “Rio admite construções no Parque da Cidade”.
Rui Rio considera-a “especulativa”, “uma subtil manipulação” das declarações e “um abuso ilegítimo de interpretação, com intenção clara de enganar os leitores” para criar a ideia de que teria mudado de posição sobre a matéria.
Mas o Presidente da Câmara do Porto ataca, somente, o título, já que considera “correcto o trabalho desenvolvido pelos jornalistas que assinam a peça no interior do jornal”.
As declarações da polémica foram as seguintes, depois de questionado se continua a dar a garantia de que não vai haver construções no Parque da Cidade: «É uma garantia que tem de ser entendida de forma equilibrada e com bom-senso. Quando digo que não há construções, estou a referir-me à especulação imobiliária. Não estou a imaginar, mas pode haver um qualquer pormenor, um remate... Neste mandato tenho condições para tentar uma solução». (JN, 30.10.2005, p. 5)

Ora, em rigor semântico, esta resposta admite construções! Não se explica é de que tipo! O entrevistado falhou ao não especificar correctamente o que queira dizer. Logo, abriu espaço para que a manchete não possa ser desmentida.
Sente, porém, que o título tem subjacente um valor conotativo que ultrapassa largamente a denotação. Que possui, até, uma mensagem subliminar que será descodificada pelos leitores com a obtenção de um significado que contraria o sentido da sua resposta.
Rui Rio tem legitimidade para assim se sentir porque sabe o peso do valor das palavras. Porque elas afectam mais profundamente o instinto do que a razão. E bem o sentiu no “calor” da campanha!
Mas a resposta política deve ter como objectivo conseguir alcançar uma “boa imprensa” e não provocar, ainda mais os jornalistas. Só que isso exige uma reacção ponderada e inteligente. Uma boa e sólida estratégia de comunicação! Algo que aqui não acontece.

Em suma, a manchete é uma constatação. O entrevistado respondeu como quis.
Inferir a existência de um abuso de interpretação é cair num conflito de significação.
As regras do género jornalístico são respeitadas. A manchete não é mentira.

Este documento é inconsequente.
Nenhum órgão de comunicação social aceitará estas regras, a Câmara não terá o que exige e os media continuarão a conseguir obter as informações que precisam para construir as notícias segundo todas as regras ética e deontologicamente aceites.

O jornalismo é simples. As pessoas é que são complicadas!
publicado por Dani às 18:15
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1 comentário:
De Anónimo a 16 de Março de 2007
Enjoyed a lot! » (http://film-editing-schools2.blogspot.com)

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